quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia Internacional da mulher

8 de Março: aprendendo a fazer sabotagem - Edmilson Schinelo


Terça-feira, 6 de março de 2012 - 14h20min

Edmilson Schinelo é assesor do CEBI. Colaborou no livro Bíblia e Negritude - Pistas para uma leitura afro-descendente e em outros títulos.

Entre as comemorações do mês de março, destaca-se o dia 8, Dia Internacional da Mulher. É um dia de festa e de luta. E é bom que seja assim, pois a humanidade precisa celebrar suas conquistas, principalmente as que se efetivaram com muita luta. Mas é bom também que seja um dia de resgate da história, o que nem sempre é garantido, há muita gente interessada em esquecer as revoluções feitas pelos pequenos.

É preciso ter presente as vidas das 129 mulheres que no 08 de março de 1857 morreram queimadas numa fábrica em Nova Iorque. A razão já é conhecida: diante da justa reivindicação por melhores condições de trabalho, os patrões ordenaram que as portas fossem trancadas e a fábrica incendiada. Na concepção dos patrões, elas estavam fazendo sabotagem!

Mas essa história de sabotagem feita por mulheres é um pouco mais antiga. Com a Revolução Industrial, mulheres e crianças eram levadas às fábricas para trabalharem quatorze, dezesseis horas por dia, sem direito a descanso, em péssimas condições de higiene, sem qualquer segurança, quase sem remuneração. A história não foi capaz de registrar as milhares de mortes ocorridas, em função da fome, do cansaço, da falta de segurança das máquinas. Ironicamente, costuma-se chamar a esse tipo de morte de “acidentes de trabalho” e não de assassinato! Vale a pena conhecer melhor esse período, uma boa ajuda para isso é o filme Dans: Um grito de Justiça. Quem tiver a oportunidade, deve assistir.

A sabotagem foi então a primeira forma de resistência das mulheres, no começo de forma isolada, e depois em grupos organizados. Tais mulheres utilizavam um grosseiro tamanco de madeira que, logo descobriram, poderia ter uma outra função: se enfiassem aquele tamanco nas engrenagens das máquinas, elas travariam. E enquanto o patrão as concertasse, as mulheres poderiam respirar, descansar, dialogar, tramar, organizar a resistência e a luta..

Em francês, a palavra utilizada para dizer “tamanco” é “sabot”, daí surgiu o termo “sabotagem”, para referir-se à atitude que punha tanto medo naqueles que se achavam tão poderosos.

O que se segue abaixo é um convite para que leiamos o Magnificat na perspectiva de quem quer continuar a fazer sabotagem, por acreditar no Deus que “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes” (Lc 1,52).

Um poema de mulheres pobres

“Magnificat” é o título latino muito cedo dado ao “Cântico de Maria”, o belo poema de Lc 1, 46-56. Mas engana-se quem pensa que Maria pronunciou tudo aquilo de improviso, dando uma de repentista. O poema é uma coletânea de versos extraídos do Primeiro Testamento, tendo como pano de fundo o chamado Cântico de Ana (1 Sm 2,1-10). E nesse sentido é poema de mulheres pobres, não só por marcar o encontro de Maria e Isabel, mas por se constituir em memória de um grupo que por nós precisa ser melhor conhecido.

Ao atribuir o poema a Maria, a comunidade de Lucas quer, entre outras coisas afirmar que a jovem mãe fazia parte dos ‘anawîn, os “pobres de Javé”. Desde a época da destruição do país pela Babilônia , que aconteceu por volta de 587 a.C., o povo israelita começa a esperar o restaurador do reino davídico, o Messias. Com o passar do tempo, vão se constituindo grupos e partidos, cada um com sua teologia própria, cada um esperando um messias que viesse satisfazer seus interesses. Começam a se formular compreensões diferentes dessa figura. Os fariseus, por exemplo, aguardavam a chegada de um messias que viesse restaurar o reino davídico a partir da exigência do cumprimento total da Lei de Moisés. Os zelotas, por sua vez, aguardavam um messias guerrilheiro que expulsasse a dominação romana por meio de uma revolução armada.

Apesar dos poucos registros históricos, sabemos da existência de um outro grupo que se reunia para louvar ao Deus dos pobres, na espera de um messias que viesse do meio dos pobres, tal como havia profetizado Zacarias: “Eis que o teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso, humilde[1], montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho da jumenta” (Zc 9,9). Trata-se dos ‘anawîm, os “pobres de Javé”. Desse grupo faziam parte, provavelmente, Isabel e Zacarias, os pais de João Batista, justos diante de Deus (Lc 1,5-6); o justo e piedoso Simeão, que aguardava a consolação de Israel (Lc 2, 25); a profetiza Ana, com seus oitenta e quatro anos de sonho e esperança (Lc 2, 36-38). E Maria, com seu noivo José, que também era justo, conforme Mt 1,19. Parece que o termo “justo” é um adjetivo freqüentemente atribuído às pessoas participantes do grupo dos ‘anawîm.

É notável a liderança das mulheres entre os ‘anawîm. Muito provavelmente em seus momentos de encontro, de oração, elas iam coletando frases do Primeiro Testamento e compondo canções como o Magnificat. Os capítulos iniciais do evangelho de Lucas recolhem ainda o chamado Cântico de Zacarias (Lc 1, 68-75), outro exemplo desses poemas. Maria sabia de cor essas canções, elas eram a história do seu povo.

Composição de mulheres que conhecem bem as Escrituras

Numa cultura onde as mulheres não tinham acesso às letras, chama a atenção como no Magnificat se fazem presentes os textos bíblicos. É evidente a força feminina na manutenção da história através da memória oral, visto que a escrita estava ligada a pequenos grupos, normalmente de homens detentores do poder. Vamos citar alguns textos apenas, mas vale olhar com mais calma para descobrir outras. Assim perceberemos como Maria e as suas companheiras conheciam bem a história de seu povo e dela tiravam forças para lutar.

A principal fonte inspiradora do Magnificat é o Cântico de Ana, mulher estéril, por isso discriminada e humilhada. Na amargura, chora e derrama a sua alma diante de Deus (1 Sm 1,10.15). Mas sabe expressar a sua gratidão ao se tornar mãe de Samuel: “eu o pedi a Javé” (1 Sm 1, 20). Muito sabiamente, o redator de 1Sm a ela atribui o poema presente em 1Sm 2,1-10. “O meu coração exulta em Javé, a minha força se exalta em meu Deus... O arco dos poderosos é quebrado, os fracos são cingidos de força” (vv 1.4-5).

Entretanto, o Magnificat percorre vários livros do Primeiro Testamento. Isaías havia dito: Transbordo de alegria em Javé, a minha alma se alegra em meu Deus, porque ele me vestiu com vestes de salvação, cobriu-me com um manto de justiça.. (Is 61,10). Hab 3,18 diz algo semelhante: “Eu me alegrarei em Javé, exultarei no Deus de minha salvação. A figura do “servo sofredor” também é retomada, quando o poema diz que o Senhor “socorreu Israel seu servo”(Lc 1,54). Vale conferir Is 41, 8-20, um belo cântico de esperança: “Tu és meu servo, eu te escolhi, não te rejeitei. Não temas, porque eu estou contigo, não fiques apavorado, pois eu sou o teu Deus. Não temas, vermezinho de Jacó, e tu bichinho de Israel. Eu mesmo te ajudarei”. (Is 41, 9-10.14).

O livro dos Salmos é muito visitado: 89,11; 98,3; 103,17; 107,9; 111, 9. Do Gênesis, evoca-se a figura da bem-aventurada Lia, companheira de Jacó, quando engravidou pela segunda vez: “Que felicidade! As mulheres me felicitarão” (Gn 30,13). E também a promessa feita às matriarcas e aos patriarcas do povo, por meio de Abraão (Gn 12; Gn 15). Explícita ainda é a citação de Gn 22 18: “Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra”.

A fé num Deus que é capaz de travar as engrenagens

Uma vez um príncipe escreveu a Lutero pedindo-lhe orientações de como cumprir bem sua função de dirigente do povo, sem ser mais um opressor. Foi na época em que o próprio Lutero estava sendo oprimido e perseguido. Conhecedor das Escrituras que era, não exitou em responder: “coloque em prática o que está escrito no Magnificat, aprenda de Maria que Deus que derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes!”

Não sabemos se o príncipe seguiu o conselho de Lutero. O que podemos afirmar é que Lutero não concordava coma a imagem de uma Maria meiga, mansa, que aceitava tudo passivamente. Essa Maria é criação do machismo que reinou na cristandade e ainda reina na maioria das igrejas cristãs, principalmente em nível institucional. Uma pessoa assim não teria força para cantar e praticar um poema como o Magnificat.

Ao contrário, o que descobrimos no poema são mulheres organizadas e dispostas a enfrentar o sistema estabelecido para preservar a memória (Lc 1,54). Mulheres que têm pressa quando é preciso expressar a solidariedade e por isso enfrentam montanhas (Lc 1,39). Mulheres que sabem cantar com a alma (1,46), que sabem sentir que estão grávidas do novo, que lhes salta no ventre (1,44). Mulheres que pregam a revolução das estruturas de forma corajosa e contundente porque acreditam num Deus que dispersa os homens de coração orgulhoso (1,51) e é capaz de cumular de bens os famintos, despedindo os ricos de mãos vazias (1,53).

Foi assim que essas mulheres acabaram fazendo sabotagem! Começaram a travar as engrenagens do tão bem organizado Império Romano. Delas aprenderam mais tarde as mulheres da Revolução Industrial, usando até mesmo seus tamancos para depor os poderosos de seus tronos (1,52).

E de mulheres lutadoras de hoje também somos convidadas e convidados a aprender. Aprender do sonho daquelas que sabem de seus direitos, às vezes até assegurados no papel, mas ainda ilusórios na prática.

Para aqueles que detêm as riquezas que nós, mulheres e homens ajudamos a produzir, a máquina capitalista funciona bem, é perfeita. Mas nós sabemos que não. E é por isso que somos capazes de travar suas engrenagens. E enquanto eles ficam perplexos diante de nossa sabotagem, a criança já está saltando de alegria em nosso ventre!



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[1] O termo “humilde” é a tradução do hebraico ‘anî. O profeta Sofonias já havia feito o seguinte convite aos pobres e humildes (‘anawîm): “Procurem a Javé, vós todos os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurem a justiça, procurem a pobreza (Sf 2,3).





Interpretação feminista do relato da criação - Leonardo Boff

Terça-feira, 6 de março de 2012 - 14h00min

As teólogas feministas nos despertaram para traços antifeministas no atual relato da criação de Eva (Gn 1,18-25) e da queda original (Gn 3,1-19), o que veio reforçar na cultura o preconceito contra as mulheres. Consoante este relato, a mulher é formada da costela de Adão que, ao vê-la, exclama: "eis os ossos de meus ossos, a carne de minha carne; chamar-se-á varoa (hebraico: ishá) porque foi tirada do varão (ish); por isso o varão deixará pai e mãe para se unir a sua varoa: e os dois serão uma só carne"(2,23-25).

O sentido originário visava mostrar a unidade homem/mulher. Mas, a anterioridade de Adão e a formação a partir de sua costela foi, porém, interpretada como superioridade masculina. O relato da queda soa também antifeminista: "Viu, pois, a mulher que o fruto daquela árvore era bom para comer..tomou do fruto e o comeu; deu-o também a seu marido e comeu; imediatamente se lhes abriram os olhos e se deram conta de que estavam nus"(Gn 3,6-7).

Interpreta-se a mulher como sexo fraco, pois foi ela que caiu na tentação e, a partir daí, seduziu o homem. Eis a razão de seu submetimento histórico, agora ideologicamente justificado: "estarás sob o poder de teu marido e ele te dominará"(Gn 3,16).

Há uma leitura mais radical, apresentada por duas teólogas feministas, entre outras: Riane Eisler (Sacred Pleasure, Sex Myth and the Politics of the Body,1995) e Françoise Gange (Les dieux menteurs 1997) que aqui resumo. Estas autoras partem do dado histórico de que houve uma era matriarcal anterior à patriarcal. Segundo elas, o relato do pecado original seria introduzido no interesse do patriarcado como uma peça de culpabilização das mulheres para arrebatar-lhes o poder e consolidar o domínio do homem. Os ritos e os símbolos sagrados do matriarcado teriam sido diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior. O atual relato do pecado original coloca em xeque os quatro símbolos fundamentais do matriarcado.

O primeiro símbolo atacado é a mulher em si que na cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal ela simbolizava a Grande-Mãe. Agora é feita a grande sedutora.

No segundo, desconstrói-se o símbolo da serpente que representava a sabedoria divina que se renovava sempre como se renova a pele da serpente.

No terceiro, desfigura-se a árvore da vida, tida como um dos símbolos principais da vida, gestada pelas mulheres, agora colocada sob o interdito: "não comais nem toqueis de seu fruto" (3,3).

No quarto, se distorce o caráter simbólico da sexualidade, tida como sagrada, pois permitia o acesso ao êxtase e ao conhecimento místico, representada pela relação homem-mulher.

Ora, o que faz o atual relato do pecado original? Inverte totalmente o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Desacraliza-os, diaboliza-os e transforma o que era bênção em maldição.

A mulher é eternamente maldita, feita um ser inferior, sedutora do homem que "a dominará" (Gen 3,16). O poder de dar a vida será realizado entre dores (Gn 3,16).

A serpente será maldita, feita inimigo fidagal da mulher que lhe ferirá a cabeça mas que será mordida no calcanhar (Gn 3,15).

A árvore da vida e da sabedoria cai sob o signo do interdito. Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de sabedoria. Agora comer dela significa perigo letal (Gn 3,3).

O laço sagrado entre o homem e a mulher é substituído pelo laço matrimonial, ocupando o homem o lugar de chefe e a mulher de dominada (Gn 3,16).

Aqui se operou uma desconstrução profunda do relato anterior, feminino e sacral. Hoje todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador como está no Gênesis.

Por que escrever sobre isso? É para reforçar o trabalho das teólogas feministas que nos apontam quão profundas são as raízes da dominação das mulheres. Ao resgatarem o relato mais arcaico, feminista, elas visam propor uma alternativa mais originária e positiva na qual apareça uma relação nova com a vida, com os gêneros, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade.

[Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro o livro "Feminino&Masculino", Record 2010].